Um Natal sem Boneco de Neve

Um Natal sem Boneco de Neve

          Eu me recordo que em cima do bifê da casa dos meus pais havia um lindo ´´boneco de neve´´ feito de papel machê. Era este um dos ornamentos natalinos de que eu mais gostava. Pegava o boneco entre as minhas mãos, afagava-o, e depois me punha a pensar sobre as maravilhas que o Natal me traria. A casa de mamãe ficava toda arrumada, desde o jardim, pois o papai se esmerava para deixá-lo o mais bonito possível, colocando atrás das plantas e das pedras aquelas luzinhas coloridas, nostálgicas, que nem se encontram mais por aí.

          Época imorredoura, os natais foram me formando. Jamais deixei de acompanhar o Papai Noel que rodeava a Praça Coronel Pedro Osório, em Pelotas, passando bem defronte ao palacete de minha avó Judith, quando da sacada eu lhe dava abanos e mais abanos. Ao me testemunhar assim tão espavorido da vida, o ´´bom velhinho´´ acenava lá de cima do seu carro alegórico, rodeado de anjos e gnomos. Porém, francamente, eu nunca deixei que a magia envolvente de Noel tomasse o lugar Daquele que era, verdadeiramente, o centro do Natal: o Menino Jesus.

         Neste ano, cansado de tantas cruzadas, eu disse a Arlene: ´´Vamos apenas armar a nossa tradicional Árvore na sala de visitas da Santa Helena´´. No entanto, ao remexer nos enfeites de Natal, especialmente nos mais antigos, aqueles que mais nos tem a falar a respeito do que já se foi, não resisti em desamarrar as caixas de papelão, e, assim, desembrulhar um a um dos ornamentos, repatriando-os aos lugares que sempre foram deles.

          Quase às vésperas do Natal tivemos a casa toda iluminada pelas lampadinhas que piscam sem parar. À noite, então, eu me estiro sobre os sofás das salas e fico vislumbrando o que consegui arrumar, talvez, mesmo, a princípio, contra a minha vontade, mas sob a inspiração divina deste tempo do Advento, o que nos prepara a receber, mais uma vez, em nossos lares, a presença real do Menino Deus.

         Aquele velho e antigo Boneco de Neve, dos velhos e antigos natais, um dia mamãe me confiou de presente: ´´Toma - disse-me ela - leva contigo para enfeitar a tua casa´´. Eu o peguei envolvido em um contentamento dos céus. O Boneco de Neve tomava, agora, lugar em nosso bifê, olhando-me, quem sabe, tal qual eu o enxergo nos dias de hoje: com um olhar mais cabisbaixo e tristonho, deixando-me levar pela melancolia dos natais que se foram na escorregadela do tempo. Saudades da Dadá, do papai, da Dinda, da vovó, enfim, de todos aqueles que já não se acham, fisicamente, junto a nós. Mas o meu Boneco de Neve durou até não poder mais se sustentar em seu corpo de papel: desmontou-se aos poucos, achatando-se como um bolo abatumado, caindo-lhe a cartola, o cachimbo, os olhos, tudo o mais. 

         Arlene sempre me invocara ao que eu haveria de aceitar: ´´Este teu boneco de neve não dá mais.´´ Mas eu insisti com ele até o pobre não conseguir dar cumprimento às suas funções natalinas. Resguardado pela providência, um dia ganhei de presente um cão dálmata, porque eu corrijira de graça uma tese para uma moça, a pedido de sua mãe. Naquele 18 de dezembro de 2005, quando fui entregar o trabalho da estudante, lá me veio os seus pais com o dinheiro como pagamento do meu feito. Não obstante, de antemão, eu sabia que a família tinha poucos recursos, e que estavam fazendo um sacrifício imenso para me dar aqueles trocados juntados às duras penas. Disse-lhes que não aceitaria o pagamento. Eles, em contrapartida, trouxeram-me, do pátio dos fundos casa, um cachorro pequenote, mas muito bonito, agraciando-me com o mesmo como reconhecimento ao meu trabalho. 

         Cheguei a casa, naquela tarde, com o dálmata. Arlene não gostou. Mais um cachorro para se cuidar. Olhei para ele por horas a fio. Não havia dúvida: ele seria o meu novo Boneco de Neve. Era todo branco, com poucas pintas pretas espalhadas pelo corpo. Mas a sua carinha, indubitavelmente, era a de um Boneco de Neve de verdade. Seu nome: Xarife. E desse jeito Xarife cresceu entre os nossos braços e abraços, ganhando, a cada ano, mais aparência de um verdadeiro e grande Boneco de Neve. Eu já nem precisava do meu velho boneco da casa dos meus pais, porque este tinha sido substituído por um autêntio ´´Boneco de Natal´´. E era justamente no Natal que eu tratava de vesti-lo a caráter, colocando em sua cabeça não um gorro de Papai Noel, mas uma cartola preta de Boneco de Neve. Xarife tomava a personagem para si, adotava a postura do Boneco, esparramando pela casa toda a magia do Natal Branco.

          Por estes dias, Xarife nos apareceu cambaleando, com um andar vagaroso, carregado de olhar triste, como se me quisesse dizer algo muito importante. Eu, não é de hoje, já sabia dos seus problemas graves de coluna, da dificuldade para se levantar, das diversas cirurgias as quais se submetera. Mas ele vinha acompanhando-nos, como podia. Ainda, em uma tarde dessas, Arlene e eu, como de costume, demos a nossa caminhada até à porteira da frente. De repente, minha mulher, espantada, gritou-me: ´´Olha só quem vem atrás da gente. É o Xarife´´! Ora, mesmo com um passo curto e cambaleante, ele seguira-nos. ´´O que tu queres aqui, meu Boneco de Neve´´? - eu lhe perguntei. Ele só riu e murmurejou, como de costume.

          Faltando apenas três dias para o Natal, chega-me o nosso caseiro à janela do meu escritório: ´´Seu Felipe - bate-me ele nos vidros - acho que o Xarife não está passando bem´´. Nem necessitou de que ele me dissesse mais palavra, pois deixei logo o que estava fazendo no computador e me toquei à capela, onde o cachorro estava. A cena com que me deparei me derrubou sobre o cão. Eu não podia acreditar no que estava vendo, ou seja, o Xarife, ali, jogado sobre o ladrilho, com a língua para fora da boca, os olhos abertos, sem vida. Eu o chamei pelo seu nome: ´´Xarife, Xarife´´! Então, debrucei-me em cima dele, tratei de lhe fechar os olhinhos, e o abraçei em uma derradeira despedida.

          Não sei da vida dos outros; não sei da perda dos outros; não sei nem mesmo a respeito do Natal dos outros. Só sei que, neste ano, o meu Natal vai ser muito diverso, assemelhado aquele em que o meu ´´boneco de neve´´ de papel se espatifou no assoalho, perante os meus olhos descrentes, deixando-me vazio não somente o bifê da sala de jantar, mas a minha alma. Não terei, neste Natal, o meu Boneco de Neve trepado na sua cadeira de balanço da sala, ladeando a Árvore de Natal, nem o verei, devaneando, enquanto no velha eletrola de papai toca as mais belas canções natalinas.

          Por outra banda, eu sei, Xarife faz companhia ao trenó de Noel, emparelhando com suas renas, pondo-se a voar pelos Céus. Xarife é o xerife do Menino Jesus, à porta de sua estalagem celeste, bom cão de guarda, querido amigo de insondáveis mistérios. Eu... Pobre de mim! Eu estou aqui, agarrado a uma cartola de papelão e a uma bandana vermelha, que para sempre me lembrarão de ti.